A dignidade de um povo – 1882-1893
O Vilamento
Este artigo busca referenciar os 11 anos de emancipação politica de Santa Isabel do Sul e, de certa forma, sintetizá-la no plano histórico do Brasil Meridional, analisando a sua importância na construção histórica da povoação à margem do São Gonçalo. Em meados do século 19, as charqueadas em pleno desenvolvimento, criação pastoril abundante e o escravismo como mola propulsora do desenvolvimento econômico e social, fazendo florescer nos centros urbanos e ruralizados, as novas elites agrárias de pensamento liberal. Neste sentido, reconstituir os aspectos sociais de Santa Isabel, é construir uma nova visão que abarca desde os seus valores econômicos, sua dinâmica social, produtivas e culturais. Já as limitações documentais impuseram constantes avaliações e seguir pistas da tradição oral, fruto, portanto da cultura espontânea das pessoas que moram ou moraram em Santa Isabel, foi, às vezes, caminho indispensável. Foram horas de conversas, anotações e a percepção de um orgulho latente de todos eles. Assim a velha Santa Isabel ressurge, reconstituindo o passado e projetando um futuro melhor com um relacionamento responsável entre a cidade mãe, Arroio Grande, e o atual distrito.
Com o aldeamento formado a partir dos anos de 1850 calcado principalmente em dois pilares básicos: a charqueada e a escravidão, Santa Isabel vislumbrava na sua estrutura portuária, uma potencialidade básica de desenvolvimento e exportação de suas riquezas. Mais dos isto, era porta de entrada e saídas de produtos, portal do contrabando institucionalizado do Prata, direcionando murmúrios e fervilhando ideias e sopros de ventos liberais, que tinham suas origens desde os tempos dos farroupilhas com seu Posto Fiscal em frente a Vila. Criava-se uma Vila, nascia uma utopia nas áreas “doadas pelo Cap. José Correia Mirapalheta em terrenos de sua propriedade” em 1859. Nesta época, em 1858, a população de Santa Isabel, ainda distrito do Arroio Grande, tinha 860 homens livres, 44 libertos e 1.144 escravos. Mas nem tudo foi silêncio como se imagina. Houve insurreições, resistência e sublevações ao trabalho forçado e fugas do mundo senhorial na Vila ou nas suas extensas fazendas, desde a Formosa até a Pedra Só. Fatos isolados e ainda pouco estudados como os atos de protestos a servidão silenciosa é que lentamente vai se analisando, contidos estes nas antigas experiências vividas no período da escravatura na região entre o Chasqueiro e o Piratini.
Murmúrios na costa portuária, movimentos da Marinha Mercante em defesa de Jaguarão diante da possibilidade da invasão dos blancos de Aguirre, os vapores e suas paragens obrigatórias antes de singrarem a Mirim, e por esses lados, não há uma repetição monótona do cotidiano. Circulam ideias, jornais, folhetos subversivos, negros alforriados, miseráveis, pencas concorridíssimas e bailes das oligarquias charqueiras. Ao mesmo tempo crescem as queixas contra o descaso da administração do Arroio Grande e a criação de um novo município se torna inquestionável. Por lei Provincial nº 1.368, em 09/05/1882, é criado o município de Santa Isabel dos Canudos.
Mas duraram pouco os festejos e o orgulho isabelense. Arroio Grande não se contentaria em perder em média 30 % de suas rendas e 60 % de seu território. Era um inimigo que agia nas trincheiras e interesses corporativos, mas enquanto o embate final não chegava o novo município se estruturava nos segmentos da saúde, educação, acessos e rendas municipais, oriundas dos impostos taxados das exportações de gado, das olarias, caieiras, casas de comércios e arrematações dos passos dos Canudos, Orqueta e Maria Gomes. Quando as águas começam a ameaçar a Vila em 1889, idealizam uma represa para proteger o povoado, sugerem a uma espécie de imposto predial, cobram tributos das charqueadas de Pelotas que tendiam a monopolizar o comércio. Santa Isabel tinha pressa e os entraves burocráticos continuavam atrelados ao Arroio Grande que insistia em revogar a lei da Assembleia que criava o município.
O desvilamento
Novos e fortes rumores circulavam na povoação. Arroio Grande não queria reanexar Santa Isabel, mas sim, o desejo de retomar uma parte territorial que abrangia a região das pedreiras de calcário e as enormes quantidades de pedras, onde mais tarde seria a Matarazzo. Em nada valeria o esforço e as contínuas queixas à Presidência da Província. Em 1890, é anexada a área em litígio. Estava a partir daquele momento decretada a falência do município. Arrastou-se por mais dois anos vivendo de rendas ínfimas e soterradas em convulsões sociais. As águas já não são mais ordeiras dos tempos passados agora invadem, assustam e já não duram de 3 a 4 dias como antes, mas semanas de preocupações e improdutividade no coração administrativo do município. Sucumbe definitivamente em 16/01/1893.
Voltava a ser distrito e seus antigos prédios da administração ficaram vazios. Não haveria mais decisões importantes a serem tomadas, nem debates ou projetos de desenvolvimento da localidade e, seriam todos, do Piratini ao Chasqueiro, submissos a vontade do Arroio Grande. Pouco importava a miséria do empobrecido municipio e suas baixas arrecadações nos últimos anos, pois a ira voltava-se sempre para o Arroio Grande. Listas de baixos assinados, brigas, violência tomavam as ruas e lugares públicos. Manifestações de orgulho e inconformidade pela anexação contagiavam políticos, os poucos que ainda ficaram na Vila e moradores mais exaltados. Mas tudo era silêncio em Arroio Grande e pela lógica, nem fora dele a obra de engenharia da reanexação, mas sim do governo republicano que, no processo de reorganização territorial e administrativo do Estado, logo após instaurada a República, criava, restaurava ou extinguia municípios no Rio Grande do Sul, onde Santa Isabel, caracterizada pela sua rebeldia dos tempos passados, punia- se pela lógica financeira e interesses partidarizados.
A Revolução Federalista (1893-1895) aqui na região contribuiu em muito para a edificação do caos em Santa Isabel pós-supressão do município. Incapacitados de reprimir as manifestações revolucionárias, as forças policiais são presas fáceis e instrumentos de ações ineficazes. Invasões nos trilhos da Estação Piratini, tomada de Arroio Grande por tropas de Gumercindo ou Aparício Saraiva e consequentemente o medo instaurado.
Politicamente nada mais a fazer no Governo de Estado e sua fratricida guerra federalista no governo de Julio de Castilhos, mas a revolta e a resistência por meio arbitrários perduraram até a virada dos anos de 1900. Desordem social, vândalos oportunistas, abandono e despreparo do sistema policial marcaram a curta resistência que Santa Isabel podia oferecer. Restaram, diluídas no tempo, raízes frágeis de sentimentos passados, mas o fundamental é a reconstrução da cidadania e que seus moradores tenham o orgulho em sentirem-se os novos agentes de uma mudança de valores. Entender sua riqueza histórica e promover novas relações de um mundo diferente e uma sociedade em profundas mutações são o grande desafio, afinal, um Patrimônio Cultural do Estado merece e pode muito mais.
Cledenir Mendonça
Historiador