O blues chegou com o escravo na América inglesa. Já o atabaque rugia seus sons africanos em rituais religiosos dos candomblés com o negro cativo no centro e nordeste do Brasil. Não tínhamos aqui uma expressão vocal definida, somente lamentos, desabafos e dores entranhadas nos longos anos de opressão.
*Parte pesquisa sobre o negro rural em Rio Grande
Nossos sons eram diferentes, cadenciados em corpos marcados a rodear no mundo oculto da senzala. O negro era uma peça de trabalho, ferramenta cara para seus senhores. Mercadoria que vendia ou comprava-se, moeda de troca, garantias hipotecárias e bens “moventes” inventariados que chegavam a 25% do valor patrimonial da família. Nos batismo de filhos de escravos, até o Livro de Assentos da Igreja era separado. Não assinalavam sua origem e quase nunca constava o nome do pai, mas indispensável o registro do dono da escrava. Criavam-se, assim, ao gosto dos cantares tristes e do sonho distante da liberdade. O Código de Posturas de qualquer Freguesia aqui em nossa volta impunha artigos e capítulos nos quais quase tudo lhes era proibido. A dança e a música eram vigiadas, pois poderiam conter elementos secretos de pretensas sublevações, e este era o medo do mundo senhorial.
Em 1850, o tráfico foi proibido e, no Povo Novo, havia mais de mil negros cativos espalhados pelos campos da Freguesia. Nas festas religiosas, ali, sim, era consentido o uso do banjo (banjor africano), a rabeca ou rústica gaita de boca. Em 1858, a Freguesia do Povo Novo, criado por ato de 1846, tinha uma população de 2.066 pessoas, sendo 1328 livres, 19 libertos e 719 negros cativos.
Nas festas religiosas, o desfile da sociedade local. Misturados na grande praça, escravos, negros alforriados, peões em trânsito ou descendentes miseráveis de índios que formatariam caracteres da nossa hereditariedade. Não era uma ostentação de luxo como nos grandes centros, mas nestes dias festivos, era uma das poucas oportunidades em que se podia mostrar a riqueza medida pela aparência e não pela quantidade de terras, bois ou escravos. A abolição seria, enfim, decretada, mas ficava viva a herança dos sons afros e da miscigenação musical de influência europeia. Acredito que ainda não estudamos em Rio Grande a música negra desde a virada dos anos de 1900 e nem a influência do jazz nos conjuntos ou sobre os músicos advindos deste período. Quando conheci o Ivaci (Ivaci Pereira Cardoso) – ele era de 1923 – a arte e a música embalaram nossa longa e única tarde de conversa há seis anos passados. Músico do Povo Novo, há mais de ano que ele não tinha vontade ou condições físicas para entoar seus encantos musicais. Ofereceu-me antigas composições que ele, seus irmãos, sobrinhos e cunhado tocavam nos bailes. Achava péssimas as construções musicais atuais – São fracas? Perguntei a ele. Fez-se silêncio na sala. Com voz tênue, macia e cansada, como a procurar a medida certa para a resposta, “são fracos os executantes”. Nem tive a ousadia de falar em tecnologia digital ou instrumentos computadorizados. Ele já tinha criado seu primeiro grupo, o Choro Futurista, quando foi estudar música com Mario Constantino, mestre no Colégio Salesiano em meados dos anos 50. Ivacir tinha, então, 30 anos, casado, pai de três filhos e vivia da plantação de cebola no Banhado Silveira.
Outra paixão era o futebol. Fundou o Clube União do Arraial que manteve em atividades por 23 anos. Mas é da música que ele gostava de falar. Dizia que vinha do sangue, do sangue negro dos seus ancestrais. Dos avôs, materno e paterno, só um deles não fora escravo no Povo Novo. Disse-me que nunca faltou espaço por ser negro nos clubes em que animava as festas, nem no Esperança do Povo Novo ou na Sociedade e Instrução da Quinta, ambos representativos da outrora elite rural e de cunho “reservado” quanto à presença de negros em seu interior. Nunca notou preconceitos nas turnês musicais ou futebolísticas, mas coube ao nosso mestre a fundação da Sociedade “Disfarce e Olhe” somente para negros no Povo Novo ou o União ser formado essencialmente por jogadores negros. Otacílio Gambetá, músico da “Jazz Band Grupo dos 15!”, com sua Sociedade, também só para negros na Vila da Quinta, tornou célebre, no baile de inauguração, o discurso quando disse: “… essa sociedade não tem estatuto, cada membro é um estatuto vivo”. Nesses bailes de negros, os brancos não dançavam.
Ivaci sempre foi o idealizador do Grupo. Primeiro foi o Choro Futurista, depois passou para o Grupo Jazz Brasília, em homenagem à inauguração da nova capital federal e, depois, o Jazz Brasil com o tricampeonato de futebol no México e último nome, já nos anos 80, a Banda Brasil.
O repertório, mas sofisticado, que tinha uma composição mais harmônica em relação às animações de bailes de carnavais ou participações em festas religiosas, variavam entre marchas, valsas, boleros, tangos e maxixe. O maxixe funde-se ao ritmo da dança afro-cubana, habanera, e o sincopado da música afro-brasileira. Não falta a polca, o passe-dob ou o fox-trot.
Com a morte do Ivaci, nossa expressão musical ou o que havia de melhor dos ritmos da cultura negra musical no interior, agora silenciam. Ficou um vazio, murmúrios da nossa inconsistência em não saber, ainda, preservar nossa memória. E as partituras musicais, valem pouco, seu Ivaci? “Nem mil réis seu moço”. Foi assim que nos despedimos no único encontro que tivemos e o sax da parede, está à venda ou já foi vendido pelos herdeiros.
*Historiador – Associação Cultural Estação Quinta
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