Sobre como tornar-se menos inteligente
ou
Toques para um aspirante ao doutorado
“... o sistema estúpido de educação que os representantes das autoridades responsáveis me aplicaram, tanto a mim quanto a todos, não podia fazer, de mim, grande coisa. Eu nunca fui educado pelos educadores oficiais: sempre deixei que fosse a literatura a me transformar... ”Peter Handke
Amigo Leitor
Este pode parecer um texto escrito por uma pessoa frustrada, alguém que não conseguiu galgar os “sinuosos cumes” acadêmicos e, despeitado, escreve uma porção de desaforos aos “seres superiores” do mundo encantado do chamado e decantado nível superior. De fato, não o é. Pelo contrário, faço parte deste “mundo encantado” desde bem jovem, já que ingressei num curso superior muito cedo. Na verdade, neste momento poderia estar até comemorando meu ingresso no doutorado e acreditando que “graças à minha capacidade”, hoje eu cheguei lá. Mas vamos deixar de papo-furado e começar a meter bronca.
Primeiro toque: o disfarce
Se você é do tipo inteligente, criativo, original, politizado, participativo, não deixe ninguém perceber, caso contrário você será considerado o perfil menos adequado a um doutorado. Subtraia de seu texto qualquer indício de originalidade, de arte, de inteligência. Escreva quadradinho. Tente ser o mais medíocre possível. Sei que é difícil ver um texto medíocre associado a nosso nome, mas tenha calma, é apenas um curso. Depois, com o diploma na mão você escreve o que quiser, inclusive refutando a maldita tese. Para escrever, dê uma olhada num artigo científico e copie aquele estilo. Dê preferência aos periódicos internacionais. Eles contam mais pontos.
Segundo toque: a importância dos papéis sem importância
A qualidade e a relevância de seu projeto de tese são secundários. Importante mesmo é cumprir todos os tramites burocráticos. Há processos seletivos (e são fatos relatados a mim por professores que integram programas de pós-graduação) em que você pode ser eliminado pela falta de uma foto 3x4, ou caso esqueça de colocar os documentos em uma “pasta polionda amarela”.
Terceiro toque: o analfabeto político... esqueça Brecht
Caso você seja um raro ser politizado, consciente, participativo, não pense que um currículo rico em ações na comunidade, em partidos políticos, em conselhos de saúde, de educação, rádios comunitárias, enfim, cheio de demonstrações de sua importância enquanto um zoon politikon, possa impressionar os membros da comissão de seleção. Isto não vale nada. Deixe isso pra lá. O importante mesmo é escrever artigos em revistas científicas de circulação internacional. Isso mesmo. Escrever em linguagem inacessível para todos, exceto os poucos cientistas da área (a linguagem hermética da qual nos fala Foucault), de preferência em inglês.
Outra coisa importante: se você escreveu artigos em áreas do conhecimento tão distantes quanto polinização, física quântica, marxismo e ecologia de baleias jubarte, não se mostre tão versátil. Se fez graduação numa área, mestrado em outra e pretende fazer doutorado em uma terceira, sua situação não é nada fácil. O esquema mais quadradinho possível, tipo fazer todos os níveis na mesma área, é o mais indicado, mesmo que isto te torne cada vez mais limitado. Mas afinal o que importa se você está ficando tapado? O importante é “ser doutor”.
Preocupar-se com o futuro da humanidade? Com o bem estar da comunidade, da família? Mundo melhor? Que nada! O importante mesmo é ficar o dia inteiro na frente do computador escrevendo coisas que ninguém entende para publicar em revistas que ninguém lê.
Quarto toque: um orientador fuderoso
Pessoas justas e humanas também conseguem concluir o doutorado, mas na hora de escolher um orientador, não escolha este tipo de gente. Escolha um fuderoso, um fodão. Como reconhecer um? Simples: ele terá dezenas de pessoas para (des)orientar (normalmente bem medíocres e submissas), não terá tempo pra nada (muito menos pra você) e terá uma quantidade de publicações invejável, apesar dos artigos serem de péssima qualidade (feitos às pressas), afinal, os revisores costumam ser bastante complacentes com os fodões.
Aliás, aproveite a oportunidade para aumentar sua produtividade, empurrando até mesmo aqueles artigos que você não teria coragem de publicar nem na Revista Caras. Basta colocar o seu (des)orientador como co-autor. Os revisores destas revistas “internacionais” raramente tem coragem de reprovar o artigo de um fodão. Vá por mim. E na aula de qualificação ou na defesa de tese, ter um fodão é a garantia de que você pode falar qualquer bobagem que ninguém vai ter coragem de ralhar com você. Será aprovado com distinção e louvor, independente do que apresentar.
Quinto toque: o “seu” projeto
Pode parecer brincadeira, mas o ato de pensar, no mundo acadêmico, é bastante perigoso, arriscado. Discordar é um crime. Por isso, antes de iniciar a elaboração de um projeto, fuce na internet para saber o que seu candidato a orientador escreve, como ele escreve, quais os seus principais artigos. Então... Já sacou, hein, adivinhão? Mas isso não é tudo, não basta cita-lo abundantemente. Faça contato com ele e, de preferência, elogie bastante o cara. Diga-lhe da qualidade de seus artigos e de como você se sente identificado com a “visão de mundo” dele. Aceite todas as suas sugestões de alteração que ele fizer e não só concorde, mas também elogie estas sugestões. “Puxa, eu sozinho jamais teria percebido este erro!” ou ainda “Nada melhor do que poder contar com uma pessoa tão experiente!” De modo geral, doutores são bastante vaidosos e engolem facilmente a isca.
Sexto e último toque: você não vai querer ser assim, vai?
Diz o povo que advogado é como espermatozóide: um em um milhão vira ser humano. Então parece que com tudo que é “doutor” é a mesma coisa. Por isso, cuidado. Não que eu esteja desaconselhando ninguém a seguir esta jornada. Na verdade, precisamos de outro tipo de doutores. Aliás, grande parte de meus colegas vai concordar comigo que o esquema é realmente este, mas certamente, assim como eu, muitos pesquisadores (inclusive alguns doutores) gostariam, sinceramente, que as coisas fossem diferentes. Assim, o mais importante toque, penso eu, é que ingressar num doutorado só vale a pena mesmo se você estiver convicto de que entrará e sairá um “ser humano’.
“Os livros dos especialistas não podem dançar, nem sequer podem andar despreocupadamente ou saltar ao ar livre, e naturalmente não podem subir montanhas e chegar até a essa altura onde os caminhos se fazem complicados e o ar, difícil de respirar. Sua escrita indica algo pesado e oprimido que oprime e esmaga o leitor: um ventre fundido e um corpo inclinado, uma alma que se encurva; uma habitação pequena e sem ventilação, de atmosfera carregada, de teto baixo; formalidade e mau humor, movimentos cansados, falta de liberdade... e ‘vê-se sua corcunda, pois todo especialista tem corcunda’”. Jorge Larrosa, explanando crítica de Nietzsche aos “eruditos”
P.S.1 Dedico este texto a Aloysio Nogueira, ao quadrinheiro Dante, Davi Leal, Elder Monteiro, Luis Carvalho, Marcílio Colares, Marcos José, Mônica Colares, Paulo Assunção, Victor Hugo Neves, pessoas criativas e inteligentes que não fizeram doutorado. Dedico também ao músico e instrumentista baiano Tom Zé, igualmente criativo e inteligente, apesar do doutorado.
P.S.2 – Apesar de ter participado em diversas seleções para o doutorado que se enquadram perfeitamente nestes moldes, meu ingresso no doutorado deu-se de maneira bastante distinta. O curso aceitou, sem restrições meu currículo “generalista”, indicou um orientador (que portanto, ainda não conheço) e aceitou meu projeto, apesar de não ter citado, nem elogiado, nem sequer feito contato prévio com qualquer professor do programa.
[1] Professor do Departamento de Parasitologia da Universidade Federal do Amazonas (UFAM). Mestre em Ecologia (de lagartos) pelo Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA) e doutorando do Programa de Educação Científica e Tecnológica da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)
Texto publicado pelo Jornalista Carlos Branco (A Crítica)
em sua página http://www.carlosbranco.jor.br
no espaço Pharmákon: veneno ou remédio
e pelo Jornal Amazonas em Tempo
em seu caderno de Ciência e Tecnologia